O RECONHECIMENTO de Guimarães Rosa, de
ser um "velho admirador" e "velho amoroso" da geografia,
foi publicamente assumido pelo escritor, ao tomar posse, no dia 20 de dezembro
de 1945, no cargo de sócio titular da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro.
Em seu pronunciamento, publicado originalmente na Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro (Tomo
LIII, 1946, p.96-7), afirmou que sua paixão pela geografia "veio pelos
caminhos da poesia" e descreveu sua emoção pela beleza das terras
brasileiras. Mantida a versão ortográfica original, segue o pronunciamento na
íntegra:
"GRANDE É, Agora, a minha
satisfação, grande a distinção que me conferis, neste momento. Honra e alegria,
indizíveis; porque, à falta de outros títulos, com dois dêles me reconheço, ao
ser empossado no cargo de sócio titular desta agremiação: como velho admirador
da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, e como velho amoroso da Geografia.
Admirador desvalioso e amoroso ignorante, certo; mas rico de entusiasmo e de
sinceridade. E é assim que vos agradeço. Aos que propuzeram o meu nome, aos que
aprovaram a proposta, aos que ora me recebem.
Devo explicar-me. De inicio, o amor da
Geografia me veiu pelos caminhos da poesia – da imensa emoção poética que sobe
da nossa terra e das suas belezas: dos campos, das matas, dos rios, das
montanhas; capões e chapadões, alturas e planuras, ipuêiras e capoeiras,
caátingas e restingas, montes e horizontes; do grande corpo, eterno, do Brasil.
Tinha que procurar a Geografia, pois. Porque, «para mais amar e servir o
Brasil, mistér se faz melhor conhecê-lo»; já que, mesmo para o embevecimento do
puro contemplativo, pouco a pouco se impõe a necessidade de uma disciplina
científica.
Desarmado da luz reveladora dos
conhecimentos geográficos, e provido tão só da sua capacidade receptiva para a
beleza, o artista vê a natureza aprisionada no campo punctiforme do momento
presente. Falta-lhe saber da grande vida, evolvente, do conjunto. Escapa-lhe a
majestosa magia dos movimentos milenários: o alargamento progressivo dos vales,
e a suavização dos relêvos; o rejuvenescimento dos rios, que se aprofundam; na
quadra das cheias, o enganoso fluir dos falsos-braços, que são abandonados
meândros; a rapina voraz e fatal dos rios que capturam outros rios, de outras
bacias; o minucioso registro dos ciclos de erosão, gravado nas escarpas; as
estradas dos ventos, pelos vales, se esgueirando nas gargantas das serranias;
os pseudópodos da caàtinga, invadindo, pouco a pouco, os «campos gerais», onde
se destrói o arenito e onde vão morrendo, silentes, os buritís; e tudo o mais,
enfim, que representa, numa câmera lentíssima, o estremunhar da paisagem, pelos
séculos.
Ainda agora, faz menos de uma semana,
acabo de regressar de uma excursão de férias, extenuante mais proveitosa,
realizada apenas para matar saudades da minha região natal e para rever velhos
poemas naturais da minha terra mineira.
Quanta beleza! Ávido, fiz, num dia,
seis léguas a cavalo, para ir contemplar o rio epônimo – o soberbo Paraopeba –
amarelo, selvagem, possante. O «cerrado», sob as boas chuvas, tinha muitos
ornatos: a enfolhada capa-rosa, que proíbe o capim de medrar-lhe em tôrno; o
pau bate-caixa, verde-aquarela, musical aos ventos; o pao santo, coberto de
flores de leite e mel; as lobeiras, juntando grandes frutas verdes com flôres
rôxas; a bôlsa-de-pastor, brancacenta, que explica muitos casos de
«assombrações» noturnas; e os barbatimãos, estendendo fieiras de azinhavradas
moedinhas. Os campos se ondulavam, extensos. Sôbre os tabuleiros, gaviões
grasniam. A Lagoa Dourada, orgulho do Município, era um longíquo espêlho. A
Lagoa Branca, já hirsuta de juncos, guarda ainda o segredo do seu barro, que,
no dizer da gente da terra, produz, na pele humana, intensa e persistente
comichão. Buritís, hieráticos, costeiam, por quilômetros, o Brejão do Funil,
imenso, onde voam os cócos e se congregam, às dezenas as garças. E, enfim, do
«Alto Grande», mirante sem prêço, a vista se alongava, longíssima, léguas, até
o azulado das montanhas, por baixadas verdes, onde pedaços do rio se mostravam,
brilhantes, aqui e ali, como segmentos de uma enorme cobra-do-mato.
Dois dias depois, estava eu visitando,
em Cordisburgo – meu torrão inesquecível – a maravilha das maravilhas, que é a
Gruta do Maquiné. E, aqui, confesso, muita coisa se revelou a mim, pela
primeira vez. Certo, eu já pensava conhecer, desde a infância, os feéricos
encantos da Gruta e as suas deslumbrantes redondezas: môrros, bacias, lagoas,
sumidouros, monstruosos paredões de calcáreo, com o raizame lao-côontico das
gameleiras priscas, e o róseo florir das cactáceas agarrantes. Mas, era que, desta
vez, eu trazia comigo um instrumento precioso – bússola, guia, roteiro, óculo
de ampliação: o trabalho que devemos à minuciosa operosidade, ao sentimento
poético, à capacidade científica e ao talento artístico do meu saudoso amigo
Afonso de Guaira Heberle: o reconhecimento topográfico «A Gruta de Maquiné e os
seus Arredores». Deu-se a valorização da estesia paisagística, graças às lições
da ciência e da erudição. Prestígio da Geografia!
Mas, meus senhores, estou começando
mal, por um abuso, e devo sustar esta longa explicação. Do que disse, de modo
tão imperfeito, podereis avaliar o que sinto, perfeitamente.
Rogo-vos apenas crer na sinceridade da
minha emoção e no fervor dos meus propósitos, ao ser recebido, como sócio
titular desta douta e abnegada Sociedade, que, em labor silencioso e diuturno,
há tantos anos vem servindo o Brasil."
João Guimarães Rosa
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